ANIVERSARIO SP(Envelheço na Cidade)

para o centro de S. Paulo, onde a cidade realmente nasceu há quase meio milênio, convergem várias grandes artérias do trânsito da capital, que desembocam no miolo de uma área mais ou menos circunferente onde se localizam muitos dos seus pontos mais conhecidos. alguns dos cartões-postais mais famosos ficam situados naquele perímetro, embaraçados numa geografia labiríntica capaz de pôr à prova qualquer senso de direção menos afeito à paisagem vertical do lugar. a arquitetura, apesar do descaso administrativo com aquela área, ainda consegue deslumbrar um olhar apreciador. são ruas, vielas, largos, becos e travessas, viadutos, praças, ladeiras, escadarias e túneis, todos a entrecruzar-se bem no interior da grande metrópole, emoldurados pelos velhos prédios onde abrigam-se estações, lojas, lanchonetes, bares, hotéis, sebos, bancos, bingos, lotéricas e toda sorte de comércio que se possa imaginar.

fui ali numa certa tarde para tentar um trabalho, e como não consegui encontrar com as pessoas a quem procurava, fiquei dando voltas para matar o tempo e gozar das muitas curiosidades que a região oferece a quem passa por lá. saí sem paradeiro, rodando por novas paragens, procurando o que fazer. resolvi aproveitar os últimos trocados que me restavam no bolso da calça para fazer fotocópias e cortar o cabelo. à toa, entrei no primeiro salão que encontrei pela frente e pedi que a cabeleireira passasse a tesoura para rebaixar meu pêlo um dedo acima do nível da máquina. e de pronto já ela estava enfiando aquele pente sujo e fedido no meu cabelo, e aquilo foi desatando em mim um sentimento desavisado, grosseiro, ácido e rigoroso, que só a custo pude refrear com o que me sobrava da serenidade. meu pensamento foi se desenrolando dentro do espelho à minha frente, sem parar na superfície, superpondo-se ao ferrugem das ferragens, atravessando as imagens que refletiam o movimento da rua, colocando-se no meio de tudo aquilo que acontecia em volta: as mulheres e os homens apressados, correndo e correndo, distantes em suas expressões tristonhas e infelizes, atarracados e graves nos semblantes ríspidos e embrutecidos, preocupados com as contas do fim do mês, parecendo perturbados ao ritmo do passo impiedoso de um sistema que só vê e só pensa e só quer o lucro, mesmo ao custo de grandes prejuízos. qual a herança que pessoas assim irão assegurar para os seus filhos, no futuro das gerações?

o esguicho do frasco com aquela água de cheiro falso borrifada em minha nuca me despertou daquela onda que agitava minha cabeça. procurei puxar uma conversa com a intenção de dissipar aquela divagação tão imprópria àquele momento de dureza e desconforto, buscando assim aliviar as próprias incertezas que por ora se apresentavam também na minha realidade. mas não dava... a manta que me cobria, aquela escova emporcalhada, a navalha colada com o adesivo sobre a banca do espelho, o talco enjoativo... não conseguia, sentado que estava àquela cadeira, atado, imóvel, espichado, fixo...

louco para continuar meu itinerário errante, saí dali um tanto atordoado, leso, indeciso... continuei seguindo desapercebidamente, quando estaquei num ponto do caminho para procurar me orientar. e só então me dei conta, ao olhar as placas de sinalização, que estava bem no cruzamento das famosas avenidas Ipiranga e São João. então parei... lembrei da canção... aos meus ouvidos a melodia tão conhecida não chegava, desviada pela barulheira infernal daquele lugar. emaranhada na confusão, no entanto, me vinham lampejos da música tão malhada, que tantas vezes havia escutado em bares de Natal, enquanto ia radiografando cada das esquinas que compunham aquela encruzilhada inspiradora para o Caetano.

uma aura decadente impregnava aquele lugar, logo cravado instantaneamente na lembrança de alguém que está ali numa primeira vez. do lado em que me encontrava havia um ponto onde se vendiam lanches e refeições, do outro um prédio sedia uma famosa rede de crédito e na outra ponta um bingo com o sugestivo e oportunista nome de... Sampa. em redor ficam vários quiosques, botecos, camelôs, a negociar óculos, passes de metrô, cartão telefônico e o escambau. e muita, muita gente, instilando pelas narinas aquele cheiro de fritura com ranço de banha nauseante, num frenesi constante e ininterrupto de populares e engravatados, contornados por uma névoa azulada, agora ainda mais visível ao contraste da luz da noite que caía.

as paradas de ônibus estão repletas de pessoas, as calçadas lotadas, as faixas de pedestre congestionam, as mesas idem, tudo conflui para uma confusão inextricável, caótica, somando-se aos veículos, painéis luminosos de propaganda, prédios residenciais, comerciais, sedes de repartições, igrejas e afins, a compor a paisagem alucinante, pulsante, latente, viva, enquanto os vagabundos vão passando em busca de seus refúgios.

“alguma coisa acontece no meu coração...”


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