OS QUATRO

Sim!
Foi há 15 anos.
Era mesmo véspera de finados, pois lembro do alvoroço em torno do cemitério de Nova Descoberta. Estávamos a bordo de um corcel guiado pelo baterista, e havíamos acabado de voltar da cidade de Parnamirim, onde fomos para pegar o guitarrista. Agora nos dirigíamos para a casa onde aconteceria o primeiro ensaio da banda Os Quatro.
Em Natal (RN) e no natal estreamos. O local, a sede do clube do bairro estava repleto de pessoas desavisadas do que estava pra acontecer no intervalo da seresta. E assim apresentamos pela primeira vez nossas músicas, algumas composições que já tinha, somadas a outras compostas pelo baixista.
No carnaval de 92 em retiro urbano que se deu em Morro Branco, fizemos a primeira canção da banda inteira: Canturia da Miséra e da Afrição. Dá para apreciá-la até hoje, pois àquela época, ainda antes do manguebit, conjugamos autênticas linhagens sonoras, harmônicas e rítmicas, atrelando-as a um texto com sotaque. Foi estimulante.
Dez anos.
Passado esse tempo e após discreta incursão nos subterrâneos da música natalense, em meados de 2001, em show no centro a banda assinou sua despedida da cena local. Mas continuei a tocar e cantar, e contando a história.
O texto que segue foi um dos tantos elaborados durante a nossa atuação e relação com a imprensa e público, tendo sido a capa de uma das Folha de Fel, fanzine que fizemos enquanto a banda durou.


Os Quatro Elementos

O Encanto. A magia. O amor. A paixão. A poesia. Santa Música! A alma e o corpo. A não-lei. A dor. E a flor. Fel e mel. O céu. Deus no inferno. Fúria avassaladora dos animais em cavalgada pela cordilheira em chamas. Mil voltas. Cabeças em fogo a iluminar a negra noite da floresta, formando o círculo aceso. Circo aceso. Palhaços inflamáveis. Circuitos em curto, choques violentos, cortes brancos no espírito, sorrisos feridos pela verdade ainda que leve quando chega, fadiga, cigarros, café e vodcas, o vinho, injeções no cérebro, pele azul, a queda, luz pouca, beijo estalado na boca da noite, cuspe e delírio, sangue nos alvos lençóis das virgens, o sumo bendito das rosas fervidas, a espera, manhã aberta pelo sol no tranqüilo horizonte oceânico... O poeta está vivo, embora louco. Foi até um certo calvário, mas voltou. Voltou para tocar o baixo, o baixo ventre e as coxas de suas amigas devassas, para tocar com sua língua as partes mais afiadas da espada forjada pela criança portadora da peste. Agora já não há mais fuga. Um selo será fundido com o mais puro aço, cravado na carne dos magros e malditos viajantes, andarilhos da estrada selvagem e oblíqua, onde esperam a aparição da deusa, da beleza, da toda glória, da carruagem dourada onde um velho de face serena e expressão mansa toca com seus tambores a vinheta que abrirá o pórtico do saber ao anoitecer, quando o ritual sagrado será anunciado. Entoam-se cânticos da liturgia dissonante: augúrios, berros, sussurros, gritos, voz deslocada no vácuo a ecoar dentro do túnel da escuridão, clamor ensandecido e torpe, coros em desacordo, lágrima, desvio visual do mundo. Tudo estará sendo quebrado e destruído mais tarde, sabe-se. Quando ouve-se uma harpa. Arpejos ruidosos. Mentes rompidas, sons distorcidos, acordes tecidos pela poeira das veias sujas. Arrepios, suor e medo. Madrugada que se atravessa como flecha aguda e lancinante. Transgressão. O desejo de ir até a fonte. O infinito desejo de ir ter na fonte. O mais infinito desejo ardendo para sempre, para todo o sempre. Amém. E se ainda é pouco, que euforia resta? O que será encontrado no vazio?


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